A responsabilidade perante o uso e consumo de recursos naturais e os impactos da construção civil tem sido uma pauta constante nas discussões do campo da arquitetura e do urbanismo. Se no passado as ideias de “tábulas rasas”, demolições em massa e novas construções eram aceitas e incentivadas, hoje em dia parece haver uma transformação no cenário, no qual se faz necessária a discussão sobre reutilização, reuso adaptativo e reformas, partindo e utilizando daquilo que é existente. Neste texto propomos um olhar atento à como grandes arquitetos interagem com construções pré-existentes em seus projetos, a partir da análise de alguns casos.
Em 2021, o Prêmio Pritzker contemplou o escritório francês Lacaton & Vassal, uma dupla de arquitetos cuja atuação reflete o espírito democrático da arquitetura e a empatia pelo meio construído e natural.Partindo de um profundo entendimento do entorno e do contexto, os projetos de Lacaton & Vassal propõem intervenções que contemplam as diversas dimensões de interações possíveis, como as culturais, econômicas, espaciais e materiais, permitindo que os arquitetos optem por uma abordagem mínima e cuidadosa.
O resultado dessa abordagem é uma arquitetura que não traz apelos estéticos como primeiro plano, mas busca a funcionalidade e a qualidade de uso a partir de um orçamento e de recursos materiais reduzidos. Um exemplo disso é a Transformação de 530 unidades habitacionais em Bordeaux. Neste projeto, é enfatizada a restauração da estrutura do edifício, que estava quase condenada, enquanto o restante do recurso é manejado buscando valorizar as principais características do projeto original, trocando aberturas e criando varandas, terraços e jardins de inverno. Essa intervenção muda a qualidade do projeto sem grandes demolições e desperdícios.
Por outro lado, essa abordagem discreta de projeto não é uma regra quando olhamos para projetos de intervenção em estruturas existentes. Outros grandes arquitetos também já optaram por caminhos que marquem a intervenção de maneira mais radical, como é caso da Reforma e Expansão dos Museus de Arte de Harvard de Renzo Piano Building Workshop + Payette onde o contraste do antigo existente e do novo é demarcado a partir dos materiais e também da linguagem da arquitetura. O resultado é uma arquitetura onde as duas linguagens convivem, internamente e externamente, em equilíbrio.
A tendência observada é que cada vez mais será necessário o estudo e a intervenção em construções existentes, com consciência do impacto que o consumo de materiais e a produção de resíduos pode ter no meio ambiente. Nos depararemos cada vez mais com intervenções em edifícios que mudam de uso, trazendo uma outra problemática que é fazer a adaptação da construção à sua nova funcionalidade. Dessa forma, os projetos de intervenção em construção existente, seja ela patrimônio ou não, impõe o questionamento de como se quer que o novo se relacione com o antigo.
O projeto La Samaritaine do SANAA + LAGNEAU Architectes + Francois Brugel Architectes Associes + SRA Architectes, por exemplo, envolve a transformação de uma antiga e tradicional loja de departamentos francesa em uma operação urbana de uso misto com comércio, escritório, habitação e creche, buscando marcar a intervenção de maneira explícita, direta, porém harmoniosa.Os arquitetos do SANAA optaram por uma parede de vidro curvo na fachada nova que marca a contemporaneidade ao mesmo tempo que reflete a paisagem histórica do entorno, enquanto internamente o novo e o antigo convivem.
Seguindo essa mesma perspectiva, o projeto do Centro Tai Kwun para o Patrimônio e a Arte da dupla Herzog & de Meuron trata da transformação de um antigo complexo prisional do século XIX em espaços de lazer e cultura. O complexo é definido e estruturado por antigas construções que formam dois grandes pátios, ao mesmo tempo que dois novos volumes implantados bem acima das antigas paredes de granito são concebidos como elementos diferenciados, mas cuidadosamente inseridos no tecido urbano existente. Esses novos volumes não copiam nenhuma das condições históricas, mas criam um novo relacionamento com o contexto, ao se elevar, criando assim novos espaços públicos e de circulação.
Radicalizando a proposta em edifícios existentes, o projeto do Sesc 24 de Maio do Paulo Mendes da Rocha com MMBB Arquitetos é proposto no lugar de uma antiga loja de departamentos brasileira. Diferentemente do SANAA na França, neste caso o edifício não tinha grande valor arquitetônico, porém se avantajava da implantação no centro da cidade. Dessa forma, o projeto aproveita somente a estrutura existente, enfrentando o desafio de adequá-la de acordo com as necessidades do novo programa cultural, que inclui piscina e teatro. Ao mesmo tempo, o projeto também buscou inverter a antiga lógica do edifício comercial integrando e se comunicando melhor dentro do tecido urbano.
Já o Centro Cultural Caixa Forum Barcelona de Arata Isozaki se apropria de ambas as abordagens, buscando um equilíbrio que preserve e se integre ao antigo, ao mesmo tempo que marca e contrasta a intervenção. Grande parte da intervenção deste projeto se passa no subsolo, incluindo materiais locais como as paredes de pedra no pátio enterrado, mesclando a intervenção com o patrimônio. Ao mesmo tempo, opta-se por incluir elementos contemporâneos que destoam dessa linguagem marcando os acessos, como é o caso da estrutura metálica da entrada da rampa para o subsolo, ou da porta de vidro e metal na entrada do edifício. Este projeto consegue mesclar as duas abordagens, encontrando um equilíbrio com uma intervenção em grande escala quase invisível e um objeto chamariz.
Por fim, o Convento das Bernardas de Eduardo Souto de Moura consiste na transformação de um antigo convento em habitações, interferindo no existente de maneira delicada e discreta, usando materiais naturais que conversam com as antigas ruínas. Apesar de discreta, a intervenção não deixa dúvidas de quais os novos elementos e quais as ruínas. Assim como descreve Souto de Moura, “o "pitoresco" é uma fatalidade que acontece e não a vontade de um programa” descrevendo sua abordagem.
Os projetos selecionados mostram como os grandes arquitetos vencedores do Pritzker optaram por relacionar seus projetos com as estruturas pré-existentes. Seja aproveitando somente a estrutura, ou buscando a menor intervenção possível, lidar com o pré-existente significa adequar os novos usos, compreender a implantação, a relação com o entorno e os vizinhos, os fluxos existentes e aqueles que se quer chegar, a materialidade, o volume e, acima de tudo, escolher afirmar os contrastes entre o novo e o antigo, ou guiar uma intervenção cautelosa e delicada.